sábado, 16 de janeiro de 2010

Poesias existenciais I

De Alberto Magalhães

A janela

O segredo das palavras
Mistério do tempo que se foi
Noite vadia
Preâmbulo do inesperado
A chuva serôdia
Adormece a ânsia da rua
Os olhos dizem algo
Que os outros não lêem
Lembranças dispersam as nuvens
Na janela os brilhos de neon
Ofuscam as estrelas
E a lua triste.


Efêmero I

Mundo
Miragem do espírito
Sua alma é areia e pedras
Sua cor é cinza
O meu lado sombrio
Contempla as estrelas
Sugando luz
Ser pensante:
Apenas um fogo impulsivo e breve
Habitando o cosmo
Transubstanciado à terra
Na morte.


Sede

Mágoa de Deus
Por não fazer o homem feliz
Impregnado do ópio
Chamado sonho
Fragmento do Ser-alma.

Imanente

Quebra-se o cristal
Da tênue existência
Gostaria de doar a vida
Do suicida a alguém que amei.


Dois corpos no palco

Uma musa desliza:
Pluma ao vento
Nos olhos
Altivez
Na boca
Um sorriso suave
Na face
O rubor do pudor
No corpo
A cadência dos passos
Nos braços
O abraço
No espaço
O encontro dos corpos
Nos movimentos
Piruetas graciosas
No ar a leveza
De voar
Na coreografia
Dois sonhos na vida
Dois corpos no palco
Busca e separação e busca...


Distinto

Perseguimos o amor
Qual criança cega
À caça da borboleta multicor
Alma gêmea
Esse ser
Que existe apenas
Dentro da gente.


Ambíguo I

Corpo artificializado
Arma de plástico
Noiva de papel, fotogênica
Dinossauro virtual
Sentimentos obtusos
Expressões ociosas
Nos rostos de cera.


Ambíguo II

Corpo na areia
Simbiose de terra
Espírito nas lembranças
Sintonia empírica
Palco da vida
Vida na bactéria que traz a morte
Ao homem que deixa de o ser.


Holocausto

Gestos de caramujo
Palavras de solidão
Pérfido homem
Instrumento letal
Para a razão do pensador
Convergente ao meio-dia
Desagregador à meia-noite
Jardineiro das planícies
Antes de encharcá-las
De sangue.


Humano

Inteligência artificial
Sentimentos superficiais
Corações-sementes
De outros males
Predadores de si mesmos.

Carne, ossos
Músculos e neurônios
protótipo refeito
Na composição da espécie
Na dança das eras
Inviável ser
Aranha presa nas
suas próprias teias.


Gênesis

Água, ar, átomo
Energia vital
No âmago do princípio
O abstrato e a matéria
Como argamassa
Nas mãos do pedreiro.


Teatro

Desastres, fome
Doenças e guerras
O crime prospera
No palco um palhaço
Vestido de terno
Faz discurso sobre o progresso
Para depois rir de si mesmo.


Desconcerto

Ânimo e criação
Estagnação, desalento
Uma flor para um anjo
Uma vela para um demônio
Um pão para si
Uma dor para o outro.


Catarse

O filho é da mulher
A mulher do homem
O homem de Deus
O esperma do gozo
O gozo do corpo do homem
Que veio em dor
Do ventre da mulher.


Maternidade

Abre-se o Ser
Em prol do protegido
Rompe-se o elo
Ofertando-o ao mundo
Que quer devorá-lo
Aves de rapina sugarão
A inocência da sua alma.


Viagem

Vomito o meu ser
Das entranhas da vida
No meu último segundo
Nesse campo de concentração social
Barriga de mundo
Vou despido da vulnerável
Armadura de carne
Outrora expelida
Das entranhas do casulo
Da fêmea parda.


Efêmero II

Nasce de proveta ou naturalmente
Torna-se poderoso
Gênio se faz divino
No dia que dorme na terra escura
Volta a ser apenas homem.


Delírio

O sagrado e o profano
Diluídos na filosofia experimental
De todos os dias
A ilusão de se fazer Deus
Para anular o mal e a morte.


Dualidade

O mistério do salgado e do doce
na água
Da noite e do dia
no tempo
Do branco e do preto
na cor
Do masculino e do feminino
no ser
Do riso e do choro
na face
Do amor e do ódio
no coração
Do prazer e da dor
no sentimento
Do nascer e morrer
na semente.


Recônditos do Ser

Num canto da minha alma
Dormem fantasias mirabolantes
(as que me fazem transcendente, mágico)
Acordá-las-ei nos dias rebeldes
E nos sagrados

Essências de vida
A transbordar do meu Ser
Frágil corpo
Pegajoso de impurezas

Vívidas fantasias
Mirabolantes, lúdicas
Indeléveis e lúcidas
Passeiam pelo reduto do delírio
Eternas, imensas
A contradizer a minha
Pouca materialidade.


Inexistência

O vento
Rasgando-se nos seus dentes
Claros de lua
Os seus olhos
De águia ingênua
Em densas névoas de solidão
Um pássaro lá fora
Morre no frio
No mundo aziago
A criança descalça
Caminha na calçada paralela
Da história clandestina
E um coração humano
Oscila entre as euforias vulneráveis
E as verdades dilacerantes
No ceticismo do viver até a morte
Do sofrer até a sorte
Do viver ao acaso de si mesmo.



Vivente I

Pedras cintilantes
Caminho de águia
Ilusão de poder
Nas mãos de barro
Do homem
Débil de consistência
Vil de coração.


Vivente II

E vai-se esvaindo
A cada hora passada
Em cada noite perdida
Ou dormida
Na fumaça do cigarro
No álcool saído na urina
Na oxidação do tempo
Definhando a alma
Como um peixe fora d’água
Petisco de morte.


Estranho

Não se vislumbra a minha grandeza
Mas apenas as minhas fraquezas
A minha inerente grandeza é vã
A minha torpeza momentânea é enérgica
Vil natureza humana volúvel
Há momentos em que eu sou
Indiferente a tudo que sou
Ao amor e a dor
Caminhante do vale desolado
Na minha alma vulgar
De um sol fugaz
Luz fugidia que passeia
Nas águas translúcidas
Repletas de libélulas tristes
E pirilampos perdidos
Birimbelos da natureza decadente
A minha vara fura a lua
Derramando-a nas águas dos mares e oceanos
Lágrimas de todas as gerações
Lobos de lobos
Durmo em meio às vozes de trovões
E relâmpagos que beijam a terra.
Quando o meu sopro
Aquieta o mar bravio
E dispersa a ventania
Busco o silêncio de suaves estrelas
Que moram em mim.


Vagante

Na madrugada eu vim ao mundo
Na poeira eu cresci
No sereno eu me casei
Ao pôr do sol gerei um filho
Na alvorada eu parti e me perdi
Na aflição eu me encontrei
Numa segunda feira eu amei Deus
No inverno o meu amor amainou
Num sol a pino eu me embebedei
Nos braços da falsidade eu senti vertigem
No verão eu trabalhei pelo vil metal
Nas batalhas entreguei o meu corpo com suas forças
Numa praça plantei uma árvore e reguei umas flores
Numa tarde ofertei uma delas e guardei o espinho na minha carne
Num papel branco colhi o suor que se derramava
Dos meus olhos cinzentos
Na montanha a brisa me visitou e o som do mar me consolou
Num sábado eu me lembrei de Deus
Na primavera o meu amor se renovou
Num domingo eu não mais fui achado
No outono o meu corpo foi espalhado
Nas folhas caídas de certa árvore.


Eu

Eu esperando por mim
Viajante na solidão do pensamento
Escudeiro de enigmas e mistérios
Testemunha e espectro
Dos fenômenos da natureza
Eu cansado de mim
Seiva e casca
Que se rompe
Passageiro do tempo
Buscando inconscientemente
A individualidade do rumo
Para o silêncio
Solene e denso do cosmo
Indiferente ao canto
Suave e teimoso
Dos passarinhos.



Cíclico

O homem nasce e chora
Cresce e corre
Cai e levanta
Ri dos outros
Teme os fantasmas da noite
Come pão
Espera o amanhã
Senta num canto sozinho
Fala mentiras
Ensina verdades
Gaba-se de suas proezas
Escreve frases sobre o amor
Ama e odeia
Sonha dormindo e acordado
Abraça a bandeira nacional
Fala mal do país
Morre um pouco com a perda dos pais
Refaz-se em cada filho
Ensina o bem, pratica o mal
Faz uma boa ação para um velhinho
Reclama das dívidas
Tem uma crise conjugal
Embriaga-se na sexta feira e chora
Derruba uma árvore e planta outra
Vai à igreja no domingo
Sofre uma crise existencial
Em 1º de janeiro muda de vida
Tem dor de barriga
Fica saturado de TV, lê um livro
Sente-se ficando velho esquecido das coisas
Da varanda olha o céu
Buscando o sentido da vida
E dorme, e acorda
Agora às vezes sonha...


Fragmento

Um homem
Um pensamento
Um mundo
Um desejo
Um sonho
Uma ambição
Uma dor
A solidão de poder ser
O senhor do seu destino.


Teatro das vaidades (poema do caos)

Onde for vão
O embate das boas lutas
O refrigério da lei
O clamor do povo
O bom senso dos homens
Quando a justiça naufragar
Na tormenta dos interesses mesquinhos
Restará a espada contra o próprio peito
No último ato a ser encenado
Depois de se incendiar
Todo esse reino nefasto.

Autor: Alberto Magalhães